os lamentos

Por Azevedo de Albuquerque

Tem palavra que nunca chega sozinha. Me peguei pensando nisso quando vi a última versão mais famosa de “Lamento sertanejo” no Youtube; Yamandú Costa, Hamilton de Holanda – ambos amarrando o demônio do virtuosismo rasgado – e Mayra Andrade na frente de um Dominguinhos emocionado, pouco antes de levar a sanfona dele pro meio de anjinhos harpistas e corneteiros. Daí lembrei do tanto de música batizada nessa linha, povo lamentoso esse nosso.

O “Lamento” de Pixinguinha vem assim puro e abre alas para as almas queixosas. A melodia terna e engalanada é a marca de uma das composições mais sóbrias e acertadas do homem, escrita, inclusive, como resposta metafísica ao racismo que nos constitui enquanto nação, enquanto chorões e seres mais ou menos humanos. Dizem que o nome do choro veio depois de Pixinguinha ter ouvido um “lamento muito, senhor” da boca de um porteiro que o mandou entrar pela porta dos fundos – visto que negro – numa festa onde tocaria. Pixinguinha era um baita de um negão, entrando pela porta da frente ia chamar uma atenção danada. O resultado disso foi um “I have a dream” muito elegante. Ai Pixinguinha… Ainda por aqui, é engraçado ver Vinícius de Moraes escrevendo uma letrinha pra música – muito graciosa por sinal –, talvez no intuito de popularizar o negócio como tinha acontecido com “Carinhoso”. Só que não, a melodia ficou mesmo na memória das gentes soprada em saxes sexys e flautinhas danadas, ou pinicada pela palheta de Jacob do Bandolim.

Garoto, o Sardinha conhecido como “gênio das cordas”, também escreveu o seu. “Lamentos do morro” é uma das marcas indeléveis de seu talento e virtuosismo. A introdução desse choro permanece como um dos sete mistérios da criação no gênero, e, para além das implicações técnicas, a atmosfera, o gostinho, é irreplicável: parece mesmo que você está flanando pelos morros da primeira metade do século passado. Até hoje a música funciona como pedra de toque no repertório de violonistas que querem ser alguém na vida.

Os gringos conhecem “Lamento no morro” (atenção: “no”, não “do”) só como “Lamento”. Isso porque a canção de Tom Jobim e Vinícius para Orfeu da Conceição saiu no disco Wave assim. Não me perguntem a razão. Não é mera coincidência o título escolhido por Tom confundir-se com aquele de Garoto, considerado um dos precursores diretos da Bossa. Fica fechada, assim, a fase romântica dos lamentos.

Se avançamos no tempo, por exemplo, parar ouvir “O lamento do samba” de Paulo César Pinheiro, o contexto é todo outro. Século XXI: o vate se queixa da contemporaneidade pós-pagode, de sambas vazios e gente vã. O tom é saudosista, um tanto ressentido: “nos dias de hoje o samba ficou diferente / não tem mais dolência, mudou a cadência e o povo nem sente / sua melodia é uma falsa alegria que passa com o vento/ ninguém percebeu mas o samba perdeu sua voz de lamento”. É assim que é? Não sei, mas que a tradição é um vespeiro, isso é, meu camarada.

Mas o campeão é o “Lamento sertanejo” de Gil e Dominguinhos. A letra rústica – mais precisa que laser –, a sanfona balsâmica, o baixo insinuante. A bem da verdade, porém, o que fica é o sentimento rasgado de solidão e desgosto na lida com os reveses urbanos, por isso até o violeiro amador, cantando direitinho numa noite mais triste, pode arrancar lágrimas dos ouvidos mais exigentes. João e Alvim, meus companheiros de cerveja e viola, vez ou outra me botam comovido como o diabo.

joãoo alvim

2 pensamentos sobre “os lamentos

  1. Aquela misturinha de melancolia e esperança. Lamentos que mexem e têm poder transformador. No mais, é deleite aos ouvidos… ainda mais quando tocados por esses meninos-música.

Deixe um comentário