Notas pedestres

por João Filho

Se fôssemos aplicados em educação, política, economia etc. como somos em festas de toda ordem isto aqui seria uma Alemanha já reconstruída e unificada, mas não somos. Praticamente nossa energia se concentra em carnavais, lavagens e afins. Apesar dos pesares, gosto de Salvador, mas morar aqui e conviver com o trânsito animalesco (e peço desculpas antecipadas aos animais, que são mais, muito mais organizados), a grosseria quase generalizada das gentes, o barulho quantas vezes ensurdecedor imposto não importa o lugar ou hora, o fedor — há que ter estômago forte — de todos os canais, ex-rios, a ausência também quase generalizada de respeito pela limpeza e conservação das ruas, bairros, monumentos etc., repito, para morar aqui é preciso harmonizar a paciência de Jó, a força de Hércules e o caráter… (a escolha é sua, possível leitor). Virtudes das quais não sou o feliz ou infeliz — de acordo a perspectiva — portador. Se possuo um tico de paciência, faltam-me forças, se alguma força possuo, meu caráter vacila. E assim sucessivamente.

Salvador é um caos simétrico, digamos assim, por minha preguiça para encontrar um melhor termo. Não sei como, mas de algum modo a cidade funciona. Ou, talvez, a engrenagem urbana roda seus mecanismos e tritura indiferentemente quem quer que seja. A grande maioria dos acidentes de trânsito é por imprudência; a sujeira e fedor das ruas e canais é descaso; mau atendimento ou trabalho pessimamente executado é desrespeito ao próximo; o barulho…, bem, o barulho faz-me lembrar a tirada de Schopenhauer de que a inteligência de uma pessoa é proporcional à sua capacidade de suportar barulho. Quem muito suporta…

Imprudência, descaso, desrespeito e barulho. Veja que indico apenas problemas de falta de civilidade. É assim em todas as classes, cores, escolaridade e bairros indistintamente. Numa primeira visada pareço generalizar, mas não é isso. O que tento mostrar é que tais incivilidades não são prioritárias dessa ou daquela classe, bairro etc. Essa postura grosseira é encontrada em quase todos os habitantes. Confesso que certas vezes entrei em êxtase ontológico quando alguém que não conhecia foi gentil comigo em alguma ocasião. Meus amigos, ao contrário, pelo menos comigo, são gentis e generosos. Mas são meus amigos. Amigos, em grande parte, que nasceram e moram na periferia.

Gosto de Salvador, disse acima. Talvez pela proximidade do mar, de um certo tipo de luz das manhãs, do clima chuvoso de alguns meses, da arquitetura do Santo Antônio Além do Carmo, do Pelourinho, de sobrados e casarões de pontos diferentes da cidade.

A contraparte desse desabafo: agrada-me e quase sempre me faz rir o temperamento pitoresco praticado por nós baianos em determinadas situações. Isto é, o caráter anedótico da boa preguiça, das soluções linguísticas únicas daqui etc. Assim como me encontro profundamente na linguagem familiar dos meus pais, irmãos e tios, percebo-me baiano, morador de Salvador ao ouvir “aonde” utilizado como resposta negativa, ou “na moral” como “por favor”.

Um amigo contou-me de um jornaleiro que o acordava todas as manhãs, no Santo Antônio, antes de ele ir trabalhar, com o anúncio em voz alta de locutor de rádio seguido do comentário indignado sobre as notícias. Outro amigo — e isso é verdade, juro — contou-me que um colega dele abria uma caixa de fósforos vazia, fazia um gesto enchendo-a de ar e saía vendendo para turistas, assim: — Ar puro da Bahia! Ar puro da Bahia! Um real, um real! Quem vai querer! Quem vai querer!

E vem aí a Copa do Mundo. 

Deixe um comentário