É um tomar osadia…

por Ellen Joyce

“Mas essa cidade ao menos vive, tem cor e tem barulho. Não se reduz à mornidão d’um chão vermelho e seco como o do Distrito.” Ouve-me repetir acalorada o turista insatisfeito. Aponta-me tantos defeitos e precariedades que fica difícil manter meu apelo à poesia. Mas sim – insisto – há um brilho que sobrevive e respira solene por sobre os ares fétidos da cidade. Um perfeito caos de vagamundos. Quem não conhece a beleza no contraste sequer será capaz de reconhecer plenamente a beleza na perfeição.

Confesso: não foi tão simples me acostumar. Salvador é mais afetuosa, digamos assim. É raro alguém não puxar conversa numa longa viagem de ônibus, seja por tédio ou força do hábito, um motorista que deseja bom dia e boa sorte, a baiana que te chama ‘linda, meu amô’. É um “tomar osadia” constante, que não significa propriamente invasão, nem recai no clichê da hospitalidade baiana. É mais um comunicar-se espontaneamente, para além do automatismo de uma metrópole. As pessoas se encontram, as pessoas se misturam.

 Seria talvez trabalhoso (ou ainda, perverso) fazer alguém que com nada se encantou neste lugar perceber a vida circundante que tento descrever. “Não, você não precisa me lembrar quem está fora das cordas no carnaval, quantos casarões aos pedaços, o trânsito ignóbil, a família Magalhães.” A paixão por uma terra nunca é cega. Quanto mais afeição, mais profunda a consciência, afinal estar num lugar é fazer parte dele. Tramita-se por suas veias, tem-se lúcidos todos os sentidos. E principalmente: “Não é disso que falo… Não quero um visitante consternado ao meu lado. Entenda”.

 A conversa era banhada com goles de cerveja, que, entusiasmados, esquecíamos de beber. Um amigo fastioso das minhas elucubrações e da resistência do brasiliense pergunta se queremos criar peixes. A essa altura, o fiel combatente me chamava Policarpo ao mesmo tempo em que se perguntava por que diabos a fila do acarajé parecia não sair do lugar, eu retruquei indagando se acaso ele já havia provado o acarajé da falecida Dinha. “Essa agora é realmente instigante, uma defunta baiana ou uma baiana defunta?” “Ora, digo, pois, que o amigo não perca a oportunidade de comer um acarajé feito nos céus”.

dinha

2 pensamentos sobre “É um tomar osadia…

  1. Salvador é bem assim mesmo. E quem vem de fora reclama de tudo. Mas sempre tem os eternos apaixonados, como foi Vinícius pelo por do sol de Itapua.

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