os lamentos

Por Azevedo de Albuquerque

Tem palavra que nunca chega sozinha. Me peguei pensando nisso quando vi a última versão mais famosa de “Lamento sertanejo” no Youtube; Yamandú Costa, Hamilton de Holanda – ambos amarrando o demônio do virtuosismo rasgado – e Mayra Andrade na frente de um Dominguinhos emocionado, pouco antes de levar a sanfona dele pro meio de anjinhos harpistas e corneteiros. Daí lembrei do tanto de música batizada nessa linha, povo lamentoso esse nosso.

O “Lamento” de Pixinguinha vem assim puro e abre alas para as almas queixosas. A melodia terna e engalanada é a marca de uma das composições mais sóbrias e acertadas do homem, escrita, inclusive, como resposta metafísica ao racismo que nos constitui enquanto nação, enquanto chorões e seres mais ou menos humanos. Dizem que o nome do choro veio depois de Pixinguinha ter ouvido um “lamento muito, senhor” da boca de um porteiro que o mandou entrar pela porta dos fundos – visto que negro – numa festa onde tocaria. Pixinguinha era um baita de um negão, entrando pela porta da frente ia chamar uma atenção danada. O resultado disso foi um “I have a dream” muito elegante. Ai Pixinguinha… Ainda por aqui, é engraçado ver Vinícius de Moraes escrevendo uma letrinha pra música – muito graciosa por sinal –, talvez no intuito de popularizar o negócio como tinha acontecido com “Carinhoso”. Só que não, a melodia ficou mesmo na memória das gentes soprada em saxes sexys e flautinhas danadas, ou pinicada pela palheta de Jacob do Bandolim.

Garoto, o Sardinha conhecido como “gênio das cordas”, também escreveu o seu. “Lamentos do morro” é uma das marcas indeléveis de seu talento e virtuosismo. A introdução desse choro permanece como um dos sete mistérios da criação no gênero, e, para além das implicações técnicas, a atmosfera, o gostinho, é irreplicável: parece mesmo que você está flanando pelos morros da primeira metade do século passado. Até hoje a música funciona como pedra de toque no repertório de violonistas que querem ser alguém na vida.

Os gringos conhecem “Lamento no morro” (atenção: “no”, não “do”) só como “Lamento”. Isso porque a canção de Tom Jobim e Vinícius para Orfeu da Conceição saiu no disco Wave assim. Não me perguntem a razão. Não é mera coincidência o título escolhido por Tom confundir-se com aquele de Garoto, considerado um dos precursores diretos da Bossa. Fica fechada, assim, a fase romântica dos lamentos.

Se avançamos no tempo, por exemplo, parar ouvir “O lamento do samba” de Paulo César Pinheiro, o contexto é todo outro. Século XXI: o vate se queixa da contemporaneidade pós-pagode, de sambas vazios e gente vã. O tom é saudosista, um tanto ressentido: “nos dias de hoje o samba ficou diferente / não tem mais dolência, mudou a cadência e o povo nem sente / sua melodia é uma falsa alegria que passa com o vento/ ninguém percebeu mas o samba perdeu sua voz de lamento”. É assim que é? Não sei, mas que a tradição é um vespeiro, isso é, meu camarada.

Mas o campeão é o “Lamento sertanejo” de Gil e Dominguinhos. A letra rústica – mais precisa que laser –, a sanfona balsâmica, o baixo insinuante. A bem da verdade, porém, o que fica é o sentimento rasgado de solidão e desgosto na lida com os reveses urbanos, por isso até o violeiro amador, cantando direitinho numa noite mais triste, pode arrancar lágrimas dos ouvidos mais exigentes. João e Alvim, meus companheiros de cerveja e viola, vez ou outra me botam comovido como o diabo.

joãoo alvim

pra não passar por doido

Por Azevedo de Albuquerque

Levar o cabelo para Seu Bina aparar é sempre um capítulo à parte na vida de quem aderiu à nossa seita. Ainda mais considerando as complicações trazidas pelo tempo e sua foice. Já há alguns anos, os olhos de Seu Bina vestem os véus embaçados de alguma enfermidade familiar a ele e aos médicos seus clientes – sendo barbeiro da Faculdade de Medicina –, por isso, submeter-se às tesouras e navalha do homem tem se tornado uma aventura e tanto. Às vezes são os tufos remanescentes, outras, o comprimento desigual no arco do cocuruto, isso na parte tranquila. O drama cresce mesmo é quando inclinamos a cabeça para esticar nossos pescoços aos 40% da visão que restam ao velho; a navalhada dura e seca, pouca espuma usada, a pele áspera servida à lâmina vagarosa…

Embora nunca – até hoje – tenha me cortado. E nem pense, leitor, que o cronista age sacanamente ao relatar as imprecisões do barbeiro. Primeiro: quem frequenta Bina dificilmente perderia seu tempo no blog. Segundo: ninguém deixaria de cortar o cabelo com ele ouvindo o que já sabe. E terceiro: quem, afinal, lê isso aqui? Se Seu Bina decidisse falar mal de mim pelo vale do Canela o estrago seria muito maior…

Só queria mesmo trazer as últimas que escutei por lá. Tinham dois caras na minha frente e o primeiro veio com essa:

– Lugar que nem Salvador não existe, homem. Fui uma vez num prostíbulo em Fortaleza e a mulher que tava fazendo striptismo (sic) ofereceu três camisinha pros caras, de graça, entrar no quarto com ela… Alguém foi? Ficaram tudo parado olhando pra cima. Queria ver se fosse em Salvador. Voava era três de vez, pra ninguém ficar com medo de não ter mais depois.

Ao que todos riram temperando o ponto do homem com a sua própria história de safadeza local. Mas os assuntos na tosa de Bina podem mudar subitamente. Se você desvia um segundo o pensamento num devaneio particular, na volta já está desatualizado. Então, quando metade dos cachos do estudante antes de mim já estavam ao chão, chega um amigo de Bina:

– Seu Bina, tô todo arrepiado aqui, rapaz… ontem mesmo eu vi Luísa.

– Que Luísa, Zuquinha? Luísa morreu faz tempo…

– Pois é… aí que tá. Eu tava na banca, perto da ladeira. Veio uma mulher me pedindo uma sacola. Eu dou a sacola à mulher, digo é dois reais e quando olho para cara, vejo Luísa. Ela deu um sorriso, agradeceu e foi embora. Fiquei paralisado, Bina.

– É, meu filho… essas coisas acontecem. E se você fosse atrás, ver se ela tava subindo a ladeira, já ia ter desaparecido. Pode escrever.

Seu Bina, muito experiente em tudo que se possa imaginar, emendou a sua:

– Eu mesmo… certa ocasião em Santo Amaro, numa festa perto do cemitério, dancei a noite inteira com uma morena bonita da porra, toda vestida de branco. Era Célia o nome. Pois só sei que fui pegar uma cerveja e quando voltei a morena não tava mais lá. Nunca mais ninguém viu. E eu é que não fui besta de ficar perguntando pros outros se tinham visto ela, pra não passar por doido.”

Pra não passar por doido é preciso ficar atento como seu Bina, que pega rápido recado de alma penada. Há alguns dias, eu cheguei de Brasília e tenho estado muito empolgado; exagero nos arroubos líricos, vago demais por aí e acabo tomando umas a mais com meus amados amigos. Minha mãe ( – bêbado, alcoólatra, degenerado…) já disse que vai procurar ajuda pra mim – o que não me soa de todo mal, pois quem mais nitidamente necessita de ajuda é aquele que diz não precisar de nenhuma. Mas o ponto é que, se ela pudesse, me internava sem pensar duas vezes.

Não passar por doido talvez seja mesmo um dos grandes lances desse negócio…

lá na roça até sapo está pedindo canoa…

por Talmo Rodrigues

Definitivamente, vem dos céus a renovação de esperança do sertanejo. Não estou falando do retorno do primogênito de toda a criação – até porque tenho plena consciência que não serei eu, por motivos óbvios, o mensageiro escolhido para tal função. Além do mais, presumo que esse Senhor, ao qual auferimos tamanha magnitude, anteposto aos deleites artificiais de Dubai, dificilmente escolheria a aridez do sertão baiano como matriz de seu regresso. (blasfêmia!).

Falo da chuva, amigos. Essa, que arranca mais sorrisos no sertão do que um palhaço no apogeu de sua graça.

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As duas últimas vezes que estive na região de Irecê, minha terra natal, sertão nagô desse estado, foram totalmente antagônicas.  Nos festejos de fim de ano, o cenário foi totalmente desolador. A seca castigava o solo avermelhado da região, as caatingas foram severamente abaladas por queimadas, avistava-se uma enorme quantidade de animais mortos e, em alguns vilarejos, não tinha água sequer para beber.

O sofrimento e a resignação eram visíveis na face do povo, sobretudo para aqueles que vivem nas adjacências da cidade. Segundo Pezeca, proprietário de um bar local, “de verde aqui, só pena de papagaio e pano de sinuca”.

Há mais ou menos duas semanas, acordei às nove horas (muito cedo para um domingo) com uma ligação de minha mãe, trazendo a chuva na notícia, que caia há três dias consecutivos. Como precisava ir à terrinha na semana seguinte, imaginei que iria encontrar outra perspectiva. Não foi diferente.

Parti na ultima sexta-feira, depois de quatro horas de viagem, já podia observar a nova roupagem verde da vegetação caduca; os açudes e lagoas estavam cheios; meninos amarelos vendendo umbu na pista; outros pastorando cabras; feijão, milho e mamona. O brilho nos olhos das pessoas entregava o estado de satisfação pelos tempos chuvosos, além dos bares abarrotados, claro!

No sábado pela manhã, ocupei-me rapidamente de ir ao mercadão, – sempre vou à feira para ouvir os burburinhos da cidade, ver algumas figuras caricaturais e, de quebra, tomo uma gelada e degusto alguma iguaria local – eis que adentra o bar um senhor que aparentava ter uns oitenta anos (mas devia ter uns sessenta), que respondia pela alcunha de Zé Ôim. Sua indumentária era típica de todo sertanejo na melhor idade, que não circulou muito por outras terras: calçava alpercatas, calça e camisa social, portava uma caneta bic azul na algibeira (para anotações rápidas) e um chapéu tipo Waldick Soriano, seriamente afetado pela ação do tempo de cachaça. Virou-se para mim com a boca cheia de orgulho e a ausência de alguns molares:

 – Em minha roça choveu tanto, que os cachorros estão bebendo água em pé! – E pediu outra pinga de quebra-facão.

– Como assim senhor? – Pensei… Normal! Estranho seria se o bichinho bebesse em decúbito ventral!

– O aguaceiro foi tão grande lá, que os bichinhos tão com a água até o pescoço moço! – Seguido de risadas ofegantes.

– Eta! Esse ano dá milho! Mais uma!

Prontamente, Rubinho, o bêbado mor do recinto, entre cochilos e resmungos, proferiu:

– Oxem moço, o toró foi tão grande que lá na roça sapo está pedindo canoa!

Não pude conter a gargalhada!

O dia esvaiu-se ligeiramente e, até então, apesar da grande concentração de nuvens caudalosas, nenhuma gota de chuva foi ao chão. Tinha alguns anos que não presenciava uma chuva em Irecê – me senti um pouco forasteiro por isso. Segui firmemente na cerveja com alguns amigos, aguardando o temporal que se anunciava, com serias pretensões de arruinar a festa de Mastruz com Leite que iria acontecer à noite, e assim o fez.

Apocalipticamente, os trovões estrondaram para todos os lados, os raios cortavam as nuvens negras e baixas, fazendo fotos do espetáculo. A ventania ameaçava derrubar todas as árvores e todas as coisas que se opusessem à sua passagem. Por fim, o dilúvio desceu com raiva, como quem fizesse justiça com aquela terra. O povo atônito observava e agradecia. Em êxtase, com os olhos marejados diante daquela orquestra, fui contagiado por uma enorme sensação de felicidade como se aquelas águas tivessem irrigado, também, os sertões aqui de dentro.

É um tomar osadia…

por Ellen Joyce

“Mas essa cidade ao menos vive, tem cor e tem barulho. Não se reduz à mornidão d’um chão vermelho e seco como o do Distrito.” Ouve-me repetir acalorada o turista insatisfeito. Aponta-me tantos defeitos e precariedades que fica difícil manter meu apelo à poesia. Mas sim – insisto – há um brilho que sobrevive e respira solene por sobre os ares fétidos da cidade. Um perfeito caos de vagamundos. Quem não conhece a beleza no contraste sequer será capaz de reconhecer plenamente a beleza na perfeição.

Confesso: não foi tão simples me acostumar. Salvador é mais afetuosa, digamos assim. É raro alguém não puxar conversa numa longa viagem de ônibus, seja por tédio ou força do hábito, um motorista que deseja bom dia e boa sorte, a baiana que te chama ‘linda, meu amô’. É um “tomar osadia” constante, que não significa propriamente invasão, nem recai no clichê da hospitalidade baiana. É mais um comunicar-se espontaneamente, para além do automatismo de uma metrópole. As pessoas se encontram, as pessoas se misturam.

 Seria talvez trabalhoso (ou ainda, perverso) fazer alguém que com nada se encantou neste lugar perceber a vida circundante que tento descrever. “Não, você não precisa me lembrar quem está fora das cordas no carnaval, quantos casarões aos pedaços, o trânsito ignóbil, a família Magalhães.” A paixão por uma terra nunca é cega. Quanto mais afeição, mais profunda a consciência, afinal estar num lugar é fazer parte dele. Tramita-se por suas veias, tem-se lúcidos todos os sentidos. E principalmente: “Não é disso que falo… Não quero um visitante consternado ao meu lado. Entenda”.

 A conversa era banhada com goles de cerveja, que, entusiasmados, esquecíamos de beber. Um amigo fastioso das minhas elucubrações e da resistência do brasiliense pergunta se queremos criar peixes. A essa altura, o fiel combatente me chamava Policarpo ao mesmo tempo em que se perguntava por que diabos a fila do acarajé parecia não sair do lugar, eu retruquei indagando se acaso ele já havia provado o acarajé da falecida Dinha. “Essa agora é realmente instigante, uma defunta baiana ou uma baiana defunta?” “Ora, digo, pois, que o amigo não perca a oportunidade de comer um acarajé feito nos céus”.

dinha

Notas pedestres

por João Filho

Se fôssemos aplicados em educação, política, economia etc. como somos em festas de toda ordem isto aqui seria uma Alemanha já reconstruída e unificada, mas não somos. Praticamente nossa energia se concentra em carnavais, lavagens e afins. Apesar dos pesares, gosto de Salvador, mas morar aqui e conviver com o trânsito animalesco (e peço desculpas antecipadas aos animais, que são mais, muito mais organizados), a grosseria quase generalizada das gentes, o barulho quantas vezes ensurdecedor imposto não importa o lugar ou hora, o fedor — há que ter estômago forte — de todos os canais, ex-rios, a ausência também quase generalizada de respeito pela limpeza e conservação das ruas, bairros, monumentos etc., repito, para morar aqui é preciso harmonizar a paciência de Jó, a força de Hércules e o caráter… (a escolha é sua, possível leitor). Virtudes das quais não sou o feliz ou infeliz — de acordo a perspectiva — portador. Se possuo um tico de paciência, faltam-me forças, se alguma força possuo, meu caráter vacila. E assim sucessivamente.

Salvador é um caos simétrico, digamos assim, por minha preguiça para encontrar um melhor termo. Não sei como, mas de algum modo a cidade funciona. Ou, talvez, a engrenagem urbana roda seus mecanismos e tritura indiferentemente quem quer que seja. A grande maioria dos acidentes de trânsito é por imprudência; a sujeira e fedor das ruas e canais é descaso; mau atendimento ou trabalho pessimamente executado é desrespeito ao próximo; o barulho…, bem, o barulho faz-me lembrar a tirada de Schopenhauer de que a inteligência de uma pessoa é proporcional à sua capacidade de suportar barulho. Quem muito suporta…

Imprudência, descaso, desrespeito e barulho. Veja que indico apenas problemas de falta de civilidade. É assim em todas as classes, cores, escolaridade e bairros indistintamente. Numa primeira visada pareço generalizar, mas não é isso. O que tento mostrar é que tais incivilidades não são prioritárias dessa ou daquela classe, bairro etc. Essa postura grosseira é encontrada em quase todos os habitantes. Confesso que certas vezes entrei em êxtase ontológico quando alguém que não conhecia foi gentil comigo em alguma ocasião. Meus amigos, ao contrário, pelo menos comigo, são gentis e generosos. Mas são meus amigos. Amigos, em grande parte, que nasceram e moram na periferia.

Gosto de Salvador, disse acima. Talvez pela proximidade do mar, de um certo tipo de luz das manhãs, do clima chuvoso de alguns meses, da arquitetura do Santo Antônio Além do Carmo, do Pelourinho, de sobrados e casarões de pontos diferentes da cidade.

A contraparte desse desabafo: agrada-me e quase sempre me faz rir o temperamento pitoresco praticado por nós baianos em determinadas situações. Isto é, o caráter anedótico da boa preguiça, das soluções linguísticas únicas daqui etc. Assim como me encontro profundamente na linguagem familiar dos meus pais, irmãos e tios, percebo-me baiano, morador de Salvador ao ouvir “aonde” utilizado como resposta negativa, ou “na moral” como “por favor”.

Um amigo contou-me de um jornaleiro que o acordava todas as manhãs, no Santo Antônio, antes de ele ir trabalhar, com o anúncio em voz alta de locutor de rádio seguido do comentário indignado sobre as notícias. Outro amigo — e isso é verdade, juro — contou-me que um colega dele abria uma caixa de fósforos vazia, fazia um gesto enchendo-a de ar e saía vendendo para turistas, assim: — Ar puro da Bahia! Ar puro da Bahia! Um real, um real! Quem vai querer! Quem vai querer!

E vem aí a Copa do Mundo. 

Sete estudos de luz para a Praça do Campo Grande

Por Raviere

I

A aurora é seu momento mais sublime. É o horário em que os astros e as pessoas fazem um pacto de não se encontrarem. Uma luz rósea e fria cruza todos os portões sem ser interrompida, causando sensações que não se repetirão em nenhum outro momento desta jornada. É gostosa a concomitância do vento frio com a cidade vazia e o fraco brilho do sol.

II

Quase nunca vejo nada disto, pois raramente me levanto antes das nove. A praça é uma extensão de meu quarto, uma espécie de quintal gigantesco, onde eu leio todos os dias. Não tomo café da manhã, e meu dia não começa mesmo é sem uma hora de leitura naqueles bancos. O sol já está devastador; a luz quente que rodeia o monumento é mais branca que minhas folhas de papel. Os olhos ardem. Uma multidão de náufragos disputam as poucas ilhas de sombra. Não é possível me sentar nos meus lugares preferidos. O resto está quebrado ou ocupado.

Próximo à saída para o hotel, os operários descansam correndo, gritando, assobiando, lutando boxe ou jogando futebol numa piscina esvaziada. Estou na reta final de Grandes Esperanças, e um sujeito sai apressado de seu lugar. Sento-me perto e abro meu livro. Outro homem, de quem só me lembro das grandes lentes escuras dos óculos, olha para os lados. Passa uma freira.

– Eu acho isso a coisa mais errada que existe, e você?

– Hum?

– Freiras. As pessoas têm que ser livres para… Amar. – O gesto involuntário de sua mão indica outra palavra – Para amar na hora que têm vontade.

– É. – Meus olhos, contra meu esforço, não se movimentam.

– Uma roupa que nem aquela num calor desses. Mais importante que uma roupa, é ter Jesus no coração.

Gosto de gente que pensa por si próprio, mas não o estimulo. O assunto se esvai.

Funga. Funga.

– É fumaça?

– Fumaça? – Não me deixou avançar nem duas páginas…

– Cigarro. Que falta de educação. Tanta campanha contra, e o povo não aprende.

– Pois é, vou até sair daqui por isso.

Dizem que faz bem pra saúde um solzinho pela manhã…

III

1 – Famosas praças são marcadas por fogos, ferros, cordas e sangue. Quem já foi assassinado nesta daqui?

2 – Minha árvore favorita fica na boca do Corredor da Vitória. Aquela gigantesca, com raízes fortes como as veias de um líder guerrilheiro, que às vezes abriga quem não tem onde dormir. Tem escrito no tronco: Bentinho ama Capitu. Como será que ela se chama?

IV

Um favor a desconhecidos de minha terra. Recebo a incumbência de levar uma mochila pesadíssima ao Largo Dois de Julho. Todos sabemos que se trata daquele lugar maravilhoso onde os carros andam por cima do pavimento vermelho. No meio do caminho me pergunto se não estaria carregando perigosos tijolos de cocaína, mas não abro. Chego, afinal, e descubro que o destinatário me esperava na Praça. O sol estava tão insistente que continuava a bater enquanto uma chuva começa de leve. A mochila se rasga, e por pouco não se espatifam o melão, a abóbora, a rapadura e a pequena melancia. (Ninguém me pede pra carregar pão, algodão-doce, pipoca e saladas de alface). Me explicam, por fim, que largo e praça são sinônimos, e que Praça Dois de Julho e Largo do Campo Grande são o mesmo lugar, apesar de haver logo ali um Largo Dois de Julho que jamais é chamado de praça. De qualquer forma, me importa mais a hérnia que estourou próximo à minha virilha.

V

O céu cinzento não engana. Hoje não haverá baba, não haverá papo, não haverá música, sorvetes, skates, livros, balões, nem recitais.

VI

A Praça do Campo Grande tem o centro gravitacional mais poderoso da Bahia. Fazer uma reunião lá é um rito de passagem para qualquer manifestação artística, política ou filosófica que queira se afirmar entre sua classe. Um roqueiro não é baiano se não bebeu São Jorge com os amigos naqueles bancos; o escritor, o músico, o pintor, se não falou mal de seus pares por ali (correndo o risco de ter seus desafetos escutando logo às suas costas); o usuário de maconha, o negro, o zumbi, se ali não marchou; o ator, o homossexual, o crente, o bandido, o cafajeste, todos um dia se reuniram num ponto da praça. Mas somente a partir das quatro horas da tarde. Já é possível que as pequenas multidões se aglutinem em pontos diversos sem pegar sol, nem misturar seus interesses específicos.

VII

Eis que renasce uma luz semelhante. O vento não é tão frio, e o róseo divino é diluído pela multidão desinteressada. Estudantes inquietos, péssimos skatistas, atletas amadores, carregadores de sacolas, vendedores ambulantes, jogadores de dominó, cães, pássaros, micos. Não tenho caneta ou papel quando percebo que são eles que lhe dão uma razão de existir. A Praça nunca esteve mais viva. Ao crepúsculo, finalmente, ela alcança seu apogeu.

Beco

                                                                                                                                                                                                                      por Azevedo de Albuquerque

Balbúrdia na rua que leva à praça. Passantes tem pressa, amoladores de alicate nas calçadas, carros equipados com aparelhos de som sísmicos, policiais civis e vendedores dos piores discos do mundo: Praça da Piedade e vielas capilares. Faça ou não calor, você nunca quer estar ali.

Abraçando a catedral, porém, dois corredores de piche são cortados por peregrinos que passam quase incréus pela tangente da casa do senhor. Estão ansiosas, estas alminhas errantes, por um gole de cerveja e um pedaço de qualquer coisa. Querem cultuar seus deuses espalhados nas fotografias da parede e entram ali com sorrisos, esquecidos dos condenados vistos pelo caminho. Afastadas igreja e praça, alcança-se o bairro dos Barris – e há este bar no bairro dos Barris.

Como o carrossel das estações, achamos que os bares, no seu reiterado subir e descer de portas, são eternos e sobreviverão às nossas vãs existências…

Este, na semana passada, fechou. As bocas ávidas de pizzas (mesmo sendo baiano o bar), álcool e beijinhos perdidos pela noite, têm de salivar em outras paragens agora. Chamava-se Beco da Rosália e era administrado por duas excelentíssimas irmãs, muito pacientes em nossos excessos e compreensivas nos quiproquós envolvendo vil metal. Conceição e Edna, que serão das nossas noites sem o vosso cuidado? Para onde irão Pipoca e Mané de Santo Amaro quando, tarde da noite, os outros recintos tiverem encerrado expediente? Sobre quais mesas poderemos reabrir os olhos sem preocupação após o cochilo ébrio? Aonde deve ir vosso cortejo fiel?

Na era de ouro do Beco, o espaço compreendido entre as lâmpadas do poste barroco e as pedrinhas portuguesas do chão preenchia-se de violonistas de qualidade oscilante, batuqueiros e cantadoras em flor. Houve amor, muito. Mas no primeiro andar há outras salas de aluguel e os espíritas do centro, cansados de verem seus passes inutilizados por batuques e acordes dissonantes, azucrinavam o proprietário: “ou eles ou nós”.

Ficaram eles, os ditos espiritualizados, e teve início a decadência do Beco. As irmãs alugaram um casarão na mesma rua, mas o que antes era bater prego em barra de sabão ficou difícil; o movimento caiu etc. Simples; entender a ruína não é das tarefas mais difíceis – lembro muito bem de quando nos explicavam, na escola, até a queda do complexo império romano.

Entendo porque não há mais Beco do Rosália, não consigo é me conformar.

Requiescat in pace